Se um merceeiro nos engana é aldrabão e vigarista. Se uma instituição financeira nos ludibria, retirando vantagens da nossa ignorância, é sofisticação e inteligência.
Esta assimetria na valoração moral e ética dos comportamentos do sistema financeiro foi notada já no início desta crise financeira por João Pinto e Castro no seu blogue. O que as instituições financeiras fizeram até à implosão da crie que teve o seu epicentro nos Estados Unidos foi basicamente ludibriar os iletrados financeiros, fossem eles as famílias sem recursos, fossem eles os multimilionários que não sabiam onde aplicar as suas poupanças.
Ganhar dinheiro por conta da ignorância ou falta de informação do parceiro é uma actividade que tem provavelmente a idade do próprio homem na terra.
Numa pequena comunidade, a troca de informação e a pressão dos pares torna este negócio de extracção de rendas pouco duradouro - descoberta a situação, disseminada a informação, acabou o "nicho de mercado".
Nas grandes comunidades impessoais em que hoje vivemos tem de ser o Estado a combater esses abusos, com a massificação de informação e com a regulamentação. É assim que faz com os bens alimentares, é assim que também devia ter feito com os produtos financeiros.
Há mais de uma década, quando se começou a usar a euribor - primeiro lisbor - como taxa de referência para o crédito á habitação, não houve uma entidade pública, do Governo ao Banco de Portugal, que se preocupasse em explicar que as taxas de juro podiam subir. Portugal não foi caso único no panorama global. O País que é a referência da sofisticação financeira, os Estados Unidos, usaram e abusaram da ignorância para alguns retirarem rendas a outros. Sim, rendas, porque não se pode considerar, numa economia de mercado, que são lucros os ganhos obtidos porque a outra parte tem menos informação.
A própria massificação do crédito à habitação que, no caso português, foi e ainda é a forma mais rápida de ter acesso a uma casa, só muito tarde mereceu a preocupação das autoridades públicas.
Na semana passada o Banco de Portugal adoptou mais um conjunto de orientações em que diz aos bancos o que considera serem as boas práticas em matéria de revisão das taxas de juro. Com a instabilidade financeira, a banca introduziu nos contratos novas cláusulas que lhe permitem rever os "spreads" aplicados às taxas de juro. O que o banco central veio clarificar foi que essa alteração dos spreads apenas é possível nos contratos em que esteja explicitada essa possibilidade e que, mesmo nesse caso, a mudança tem de ser justificada e não pode ser discricionária. Claro que a autoridade, que tem agora também responsabilidades na área da supervisão comportamental da banca, pouco mais pode fazer, face às regras de liberdade contratual, do que um código de boas práticas, esperando que os bancos o sigam e que os consumidores o conheçam, pressionando, também por essa via, as instituições financeiras.
O que se começou a fazer desde o início da crise para proteger os consumidores de produtos financeiros é apenas o início de um longo caminho. Que só estará terminado quando todos, autoridades e consumidores, conseguirem relacionar-se com o sistema financeiro com a mesma grelha de valores que usam para a mercearia ou o restaurante.
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